segunda-feira, março 28, 2005

Jornal de Referência VS Jornal Popular - diferentes?

Comecei a consumir heroína aos vinte anos. Não tive nenhum cuidado com seringas. Nenhum mesmo. Quando comecei a consumir drogas, mal conhecia o vírus da Sida. Para mim a Sida era uma coisa de homossexuais e de actores de cinema, por isso não tinha nada a ver comigo.
Quando uma pessoa acaba de saber que é seropositiva, fica completamente absorvida por isso. O Afonso que gostava de livros ou de música, esse Afonso deixa de existir. Só existe um que é seropositivo, que vai morrer em breve, e que não sabe o que é que há-de fazer.
A consequência dos meus erros foi esta doença. Se irei morrer dela, não sei. Não quero pensar muito nisso. Claro que sinto uma certa tristeza. O VIH condiciona a minha vida em muita coisa.
As pessoas precisam de saber como as coisas são, para conseguirem calcular os riscos que correm. É a mesma coisa que eu atravessar uma estrada, existir um buraco, e não avisar quem vem atrás de mim.
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A história de Afonso, seropositivo, nunca foi contada nos jornais portugueses entre os anos de 1980 e 2000. Nem a sua nem a de ninguém. Esta é uma das principais conclusões da análise ao texto “A Sida como notícia: análise de caso sobre a cobertura jornalística da problemática VIH/SIDA nos jornais Diário de Notícias e Correio da Manhã”. (2)
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De facto, a cobertura mediática da Sida é apenas um exemplo de como uma mesma história pode ser contada ou explorada de forma diferente, em função dos seus agentes mediadores. No caso concreto dos jornais Diário de Notícias e Correio da Manhã, o trabalho de análise comparativa desenvolvido por Nelson Traquina revela uma bifurcação na abordagem à temática da Sida.
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Por um lado, o DN, jornal de referência, tem acentuado nas suas páginas, ao longo dos anos, a história médica; por outro lado, o Correio da Manhã tem preferido a história da doença que se propaga pelo mundo. Esta diferença entre os dois jornais estará com certeza relacionada com a sua própria natureza enquanto jornal de referência, num caso, e jornal popular, noutro caso.
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Apesar das diferenças teóricas entre a imprensa popular e a imprensa dita de referência, o que se verifica de uma maneira geral é uma aproximação entre estas duas formas de fazer jornalismo. Curiosamente, o DN acentuou mais os casos de escândalo que o Correio da Manhã (8% contra 4%).
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O estudo de Nelson Traquina, para além de confirmar a bifurcação já referida, revela valores-notícia semelhantes entre DN e CM, nomeadamente: proximidade, novidade, conflito, morte, concorrência, entre outros.
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Além disso o jornalismo é orientado para o acontecimento e não para a problemática em si, facto que revela a pouca iniciativa dos jornalistas na investigação e descoberta de uma notícia. Ainda assim, a participação dos profissionais existe, ainda que muito raramente.
Como nossa grande conclusão, podemos afirmar que as diferenças entre ambos os jornais, ao longo de 20 anos, são mínimas. Ambos representam a realidade, é certo, mas ambos a condicionam, dependendo dos critérios redactoriais que seguem.
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(1) Afonso Pedro, 34 anos, 3 de Janeiro de 2002 in Testemunhos, Comissão Nacional de Luta Contra a Sida
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(2) TRAQUINA, Nelson, in «Media e Jornalismo», Revista Semestral - N.º 5 - Ano 3 - 2004
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Carina Ramos
Elisabete Santos
Miguel Soares
Susana Paixão